Engenheiro civil, membro sénior e especialista em estruturas da Ordem dos Engenheiros. A partir de 1980 fundou três empresas que executam ou colaboram em intervenções de reabilitação, constituindo uma equipa de cerca de cem pessoas. Fundou e foi o primeiro presidente do GECoRPA - Grémio do Património, uma associação de empresas, profissionais e cidadãos, dedicada à área da reabilitação do edificado e do Património. É o diretor da revista “Pedra & Cal”, que se publica sem interrupção desde 1998. É membro do Conselho Consultivo do ICOMOS Portugal. Tem três livros e várias dezenas de artigos e comunicações publicados sobre temas relacionados com a reabilitação do edificado e do Património.
Q1. Como surgiu o seu interesse pela engenharia civil e pela reabilitação e reforço de estruturas?
VC: Em miúdo andava sempre com “engenhocas” e gostava de fazer desenhos. Quando cheguei ao fim do Liceu, pensei ir para arquitetura, mas acabei por “aterrar” no IST, em engenharia civil. Chegar a Lisboa em 1961, vindo de Nova Lisboa (atual Huambo, Angola), foi um choque: Nova Lisboa tinha, na altura, apenas 50 anos. Enquanto Lisboa... Eu não fazia ideia de que houvesse ruas tão estreitas e tão íngremes nem edifícios tão notáveis e tão antigos. Mais tarde, como projetista, tive várias vezes de resolver problemas em construções existentes e percebi que isso era uma especialidade em si. O interesse reforçou-se, quando comecei a tomar consciência do impacto da atividade da construção sobre o ambiente, em termos de consumo de materiais e de energia, poluição, ocupação de solo virgem e degradação da paisagem e dos ecossistemas. Percebi depressa que, em vez de continuar indefinidamente a fazer novas construções, era necessário recuperar e melhorar as construções existentes, prolongando a sua vida útil. Depois surgiu o interesse pelas construções antigas e, em particular, pelo Património Cultural Construído (PCC).
Q2. Quem foram as pessoas e/ou profissionais que mais o inspiraram a prosseguir carreira como engenheiro civil?
VC: O meu avô materno, embora fosse apenas carpinteiro de profissão, era muito engenhoso e influenciou-me bastante na infância. Depois foram os meus professores, em particular o Prof. Edgar Cardoso, cujo engenho e os grandes projetos muito admirava e ainda admiro. O LNEC ajudou-me a cultivar o gosto pela experimentação e pelo rigor.
Q3. Quais os projetos em que esteve envolvido profissionalmente de que mais se orgulha de ter participado?
VC: No LNEC e, depois, nas Construções Técnicas (em Angola) e na Engil estive envolvido em projetos muito interessantes. Mas o projeto que me deu mais trabalho e que constitui atualmente motivo de orgulho é o dos Silos da Trafaria, Almada, construídos no início da década de 80, uma das maiores instalações do género em todo o mundo. Os silos são estruturas especiais, que colocam problemas específicos ao nível do dimensionamento e dos processos construtivos. Devido ao seu grande impacto visual e à perturbação causada pela obra aos moradores, a construção do complexo gerou, na altura, alguma controvérsia.
Q4. Que livros ou outros documentos de livre acesso considera de leitura obrigatória para um engenheiro civil que queira especializar-se na reabilitação de estruturas antigas?
VC: Felizmente há muita literatura técnica com enfoque na reabilitação estrutural, quer de construções recentes, quer antigas, a nível nacional e internacional. Muitas das atuais escolas de engenharia civil estão bem apetrechadas em recursos humanos e equipamento laboratorial, e têm ajudado a aprofundar o conhecimento deste domínio. Na Internet também há informação que vale a pena conhecer e analisar, embora com bastante prudência e sentido crítico. Não há, portanto, uma “bíblia”. Aliás, não é por falta de “saber” (conhecimentos) que às vezes as intervenções se revelam deficientes. É antes por falta de “saber-fazer” (aptidões), sobretudo ao nível dos profissionais e das empresas executantes, e, no caso das construções antigas, de “saber-ser” (atitudes), em particular quando está em causa o PCC. No domínio da engenharia civil em geral e no das construções antigas, em particular, é essencial conhecer a história da construção civil, dos seus materiais e processos construtivos, dos seus agentes e profissionais, das suas empresas e organizações, e da sua evolução ao longo do tempo.
Q5. Quais as maiores valências que um jovem profissional deve possuir para vingar na engenharia civil? O que para si faz um bom engenheiro civil hoje em dia? Que conselhos daria a um jovem profissional que ambicione seguir carreira na área?
VC: Para além de aprofundar e atualizar constantemente e ao longo da vida os conhecimentos da sua profissão, terá de ter em conta que a Engenharia, e, em particular, a Engenharia Civil, é muito mais do que construção. Invoco, a este propósito, a visão da Sociedade Americana dos Engenheiros Civis (ASCE). De acordo com o princípio fundamental do Código de Ética da ASCE “Os engenheiros defendem e promovem a integridade, honra e dignidade da profissão de engenheiro usando o seu conhecimento e competências para a melhoria do bem-estar humano e do meio ambiente.” E dos “cânones fundamentais” dos engenheiros, consta, logo à cabeça: “1. Os engenheiros devem considerar primordial a segurança, a saúde e o bem-estar das pessoas e devem empenhar-se em respeitar os princípios do desenvolvimento sustentável no desempenho dos seus deveres profissionais.”
Q6. Quais os grandes desafios que o património cultural enfrenta nos dias de hoje, comparativamente com os anos noventa?
VC: O grande desafio enfrentado pelo PCC, em particular os edifícios e centros históricos, é sobreviver ao extraordinário aumento da pressão economicista que sobre ele é hoje exercida, em resultado do esgotamento dos recursos financeiros do estado, quer ao nível central quer ao nível regional, quer ao nível local. A iminência de bancarrota traduziu-se num conjunto de alterações legislativas tendente a facilitar a vida aos proprietários e aos promotores e investidores imobiliários. Logo em 2012 (Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto), o Novo Regime de Arrendamento Urbano veio permitir a atualização das rendas antigas e dentro de certos limites, facilitar o despejo dos inquilinos. Passou também a ser possível denunciar o contrato por mera comunicação, invocando a necessidade de obras profundas no imóvel, ou, ao limite, a sua demolição. Simultaneamente (Lei n.º 32/2012, de 14 de agosto), é alterado o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, (RJRU, Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro), de modo a facilitar a criação de áreas de reabilitação urbana e a intervenção em edifícios com mais de trinta anos, e a simplificar ainda mais os procedimentos de controlo prévio de operações urbanísticas. Para acelerar a obtenção de resultados, o governo lançou mão de expedientes como os vistos gold, criados em 2012 com o objetivo de promover o investimento estrangeiro em instrumentos financeiros nacionais e na criação de postos de trabalho, mas utilizados sobretudo por chineses de duvidosa reputação para comprar imóveis nos principais centros urbanos do País. A partir de 2013 passou a funcionar na câmara de Lisboa uma “via rápida” para o licenciamento. As intervenções na Baixa Pombalina e noutras áreas históricas da capital passaram a ser facilitadas através da criação de uma comissão de apreciação (em funções até à data), que inclui dois representantes da Direção Geral do Património Cultural (DGPC). Estes técnicos passaram a emitir pareceres em série para suportar as decisões envolvendo o PCC. As simplificações legislativas no RJRU receberam novo impulso menos de dois anos depois, com a implementação, através do Decreto-Lei n.º 53/2014, de 8 de abril, do regime excecional para a reabilitação urbana (RERU), que lançou um conjunto de medidas excecionais e temporárias de simplificação administrativa, com o objetivo de dinamizar a reabilitação urbana. As obras em edifícios antigos ficaram isentas de uma série de requisitos da construção de edifícios, e as simplificações vão o ponto de dispensar o reforço estrutural dos edifícios, limitando-se a determinar que as intervenções não podem diminuir as condições de segurança estrutural existentes na altura. Ainda em 2014 (Decreto-Lei n.º 136/2014 de 9 de setembro), são introduzidas simplificações adicionais muito relevantes no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE, Decreto-Lei 555/99 de 16 de dezembro). Isentam-se de controlo prévio as obras de alteração no interior de edifícios que não impliquem modificações estruturais. Adicionalmente, os termos de responsabilidade assinados pelos técnicos passam a dispensar a verificação de requisitos como o cumprimento das normas legais e regulamentares aplicáveis aos interiores dos edifícios, a efetiva conclusão da obra e a sua execução de acordo com os projetos, a autorização de utilização ou a realização de vistorias municipais. A partir de 2015, foram postas em prática, medidas de natureza fiscal que beneficiam os fundos de investimento imobiliário, como a isenção do pagamento da derrama e da retenção na fonte dos rendimentos prediais. Para cúmulo, em 2015 é aprovado um novo regime para o acesso e permanência no setor da construção (Lei n.º 41/2015, de 3 de junho), com um conjunto de simplificações, dentre as quais se destaca a que dispensa dos empreiteiros de obras particulares de demonstrarem possuir capacidade técnica!
Q7. Qual o futuro dos materiais e técnicas tradicionais de construção? Acha que o património edificado antigo está a ser devidamente protegido? O que falta fazer nesse sentido?
VC: A recuperação e divulgação das técnicas e materiais tradicionais de construção é essencial, por duas ordens de razões: primeiro, porque se trata frequentemente de técnicas muito interessantes do ponto de vista da sustentabilidade, como seja a utilização da alvenaria, da cal, da madeira e da terra. Depois porque sem conhecer em detalhe tais técnicas e materiais não é possível conceber nem executar intervenções eficazes em edifícios antigos, sobretudo se se tratar de Património Cultural Construído. Face às respostas acima é evidente que o edificado antigo não está a ser devidamente protegido. Para corrigir a presente situação é necessário romper com o presente facilitismo e fazer cumprir a Lei, os regulamentos e os planos diretores municipais, reinstituindo a verificação do cumprimento das normas legais e regulamentares aplicáveis aos interiores dos edifícios, da efetiva conclusão da obra e da sua execução de acordo com os projetos, e a realização de vistorias municipais. É também necessário completar o enquadramento legislativo aplicável ao PCC de modo a assegurar a qualificação dos técnicos responsáveis pela elaboração dos estudos, projetos e relatórios e pela direção das obras e intervenções no PCC, bem como a competência dos agentes que intervêm no PCC ao nível das inspeções e ensaios e, sobretudo da execução das intervenções (empreiteiros e subempreiteiros).
Q9. Quais são os maiores desafios que a engenharia civil e os engenheiros enfrentam atualmente ou terão de enfrentar num futuro próximo?
VC: Há claramente um grande desafio que está na ordem do dia e que se coloca sobretudo aos engenheiros incluindo os de civil: o aquecimento global e as consequentes alterações climáticas. Os efeitos do aquecimento global estão já à vista de todos e põem cada vez mais em risco o bem-estar e a segurança das populações e o funcionamento da economia. As temperaturas médias sobem de ano para ano, os períodos de seca, os incêndios, a erosão costeira, as inundações, aluimentos de terras e outros fenómenos extremos ligados ao clima produzem efeitos cada vez mais devastadores em qualquer continente e em qualquer país. Os estudos, nomeadamente do Projeto SIAM, mostram que Portugal e os outros países do sul da Europa, vão ser mais afetados que os do norte. Para Portugal Continental prevê-se para o inverno um aumento de precipitação, mas, para as restantes estações, prevê-se uma redução de precipitação que pode ultrapassar os 50%. A temperatura média subir em todas as estações, com aumentos que podem atingir os 7%. O aumento da frequência das vagas de calor e a violência crescente dos incêndios florestais com aumentos da área ardida impensáveis ainda há poucas décadas, são uma das manifestações mais notórias e assustadoras. Durante o último triénio fiz parte da Assembleia de Representantes da Ordem dos Engenheiros e bati-me para que este desafio fosse claramente enfrentado pela Ordem, enquanto representante da nossa classe profissional. O mais que consegui foi que a Ordem declarasse 2018 o ano da Ordem dos Engenheiros para as Alterações Climáticas e promovesse uma série de conferências sobre o tema. Trata-se dum problema que não vai ser resolvido por advogados ou por economistas. É um problema a ser resolvido pelos engenheiros. Um outro desafio é o do desenvolvimento sustentável. Aqui, o papel dos engenheiros civis é fundamental. A construção, enquanto instrumento do desenvolvimento, é uma atividade de primordial importância para a sociedade, proporcionando às populações as desejadas condições de segurança, salubridade e produtividade. Os benefícios da construção não são, no entanto, isentos de impactos negativos, bem ao contrário: A urbanização transforma todos os anos, em todo o mundo, três milhões de hectares de solos virgens em estradas, edifícios e supermercados; Cerca de 50% das matérias-primas extraídas da Natureza são destinadas à construção; Os entulhos resultantes das atividades da construção e demolição constituem o maior fluxo de resíduos; O ambiente construído produz aproximadamente um terço das emissões de gases de efeito de estufa. Em consequência, o desenvolvimento sustentável não é possível se a atividade desenvolvida pela construção não for, ela própria, sustentável, ou seja, se ela não se inscrever nos limites da sustentabilidade. Um terceiro desafio a enfrentar pelos engenheiros é o do combate à pobreza. Pode parecer, à partida, que é um problema que diz respeito sobretudo aos economistas. No entanto, os engenheiros podem dar contributos importantes para combater as diversas formas assumida pela pobreza, nomeadamente a pobreza alimentar, a pobreza sanitária (carência extrema de água potável e de saneamento básico), a pobreza habitacional ou a pobreza energética. São três grandes desafios que se colocam ao nível global, mas também, em maior ou menor grau, ao nível do nosso país. São problemas que envolvem opções políticas, sobre as quais os engenheiros, conscientes das suas responsabilidades profissionais, não se podem calar.
Q10. Concorda que existe uma clara falta de interesse da população mais jovem e dos jovens profissionais em geral, para os assuntos do património e do associativismo? Se sim, o que pode ser feito para tentar inverter esta situação?
VC: Captar a atenção dos cidadãos e, em particular, dos mais jovens, para as questões relacionadas com o Património cultural na sua vertente construída é o principal desafio que a iniciativa Fórum do Património tem de enfrentar, tanto mais que, no presente clima de facilitismo, os movimentos de cidadãos constituem uma das formas de obviar à concretização de intervenções que envolvam a sua degradação. Tal desiderato dilui-se por entre a multiplicidade de estímulos e solicitações das mais variadas origens, através dos mais variados meios de comunicação a que todos estamos expostos. É sabido que, hoje em dia, as redes sociais, nomeadamente o Facebook e o Instagram, constituem canais muito eficazes para se chegar aos jovens adultos, aos adolescentes e, mesmo, aos pré-adolescentes. Tal com aconteceu em Portugal e noutros países no domínio das grandes questões relativas à salvaguarda do Património Natural, em que a mobilização da população mais jovem se revelou ser o meio por excelência para obter resultados e, inclusive, chegar à população adulta, estou convicto que a mesma abordagem funcionará relativamente ao Património Cultural. Sendo a YOCOCU a “Juventude na Conservação do Património Cultural” (YOuth in COnservation of CUltural Heritage), esta é uma pergunta que vos devolvo!