A reabertura ao público de monumentos, museus e outros equipamentos culturais está agendada para o dia 18 de maio, coincidindo precisamente com a celebração do Dia Internacional dos Museus.
Não deixa de ser curioso, que a data, simbolicamente escolhida, para a reabertura de museus e outros equipamentos culturais, se assinale exatamente um mês depois do Dia Internacional de Sítios e Monumentos, uma efeméride, este ano celebrada de forma particularmente efémera.
No momento em que nos preparamos para um eventual regresso à normalidade, que aprendizagens e que mudanças podemos perspetivar, no rescaldo deste período crítico para o setor cultural e, muito particularmente, para a gestão do Património Cultural?
A consequência mais imediata, para o setor cultural, das medidas de restrição impostas em resposta à pandemia COVID-19, foi o cancelamento de quaisquer eventos, a que acresceu o encerramento de equipamentos, espaços e salas de espetáculos e, inevitavelmente, a quebra dramática de rendimentos de profissionais de (afinal) vários setores intrinsecamente ligados à cultura. Uma outra consequência da crise pandémica, com efeitos indiretos, porém nefastos, especialmente para a gestão de monumentos e sítios, mas também de museus, foi a quase total suspensão de viagens e deslocações internacionais e consequente supressão da atividade turística a nível global.
Algumas das causas da crise serão, porventura, menos imediatas, mas não mais difíceis de adivinhar. O estado de exceção contribuiu tão somente para expor fragilidades estruturantes e estruturais, na gestão de museus, sítios e monumentos, nomeadamente: a complexidade e debilidade do seu ecossistema; a precariedade laboral existente em áreas-chave como a dos serviços educativos e a dos serviços técnicos; as assimetrias ao nível de capacitação e de mobilização de recursos por parte de pequenas e grandes instituições. Acrescenta-se ainda a forte dependência do turismo e da captação de visitantes estrangeiros, na gestão de monumentos, sítios e de equipamentos culturais, mais concretamente os museus, que representam, também, em muitos casos, a sua principal interface.
Estas duas causas, sendo evidentes por si só, não estão de forma alguma dissociadas. Num artigo de opinião, e na sequência da (não) comemoração do Dia Internacional de Monumentos e sítios, Laura Castro, investigadora e Professora na Escola das Artes (UCP Porto), aborda precisamente a problemática da dependência do turismo, associando-a à ineficácia de estratégias de mobilização de públicos internos,1 para o património.
Nesta breve reflexão, a investigadora expõe ainda as incontornáveis limitações de algumas das soluções digitais (e/ou online) adotadas por museus e outras instituições, durante este período de crise. Numa perspetiva similar, Márcia Sousa, Diretora do Mudas - Museu de Arte Contemporânea da Madeira, aponta para a necessidade de medir o real impacto destas iniciativas, alicerçando-as numa estratégia que não descure a ação localizada, junto da comunidade.
Numa, igualmente breve, análise à oferta online/digital dos principais museus, a nível nacional, em tempo de fecho de portas, e apesar das discrepâncias ao nível da diversidade, organização e capacidade de divulgação das iniciativas, assistimos, por um lado, a uma estratégia de reciclagem de conteúdos, e, por outro, não especificamente desenvolvidas para o meio digital/online. A grande maioria da oferta passou pela disponibilização online, de conteúdos audiovisuais, quase todos pré-existentes e inclusivamente já fazendo parte do seu arquivo digital ainda que nem sempre com acesso público.2 De salientar, contudo, o esforço feito por algumas instituições para o desenvolvimento de programação cultural, à distância e/ou de conteúdos exclusivos, como seminários e formações, entrevistas a artistas e curadores, visitas in loco (filmadas e disponibilizadas em streaming ou em tempo real), assim como, por exemplo, a dinamização de desafios, apelando à participação das comunidades nas redes sociais.
Esta tentativa de “digitalização da experiência física”, recorrendo novamente à caracterização feita por Laura Castro, verifica-se insuficiente, quando confrontada com um entendimento da missão do museu, particularmente no caso dos monumentos e sítios, profundamente ligada à preservação de um lugar de memória, que é também físico, material. Na mesma linha de pensamento, Márcia Sousa realça a necessidade de enquadrar eventuais futuras dinâmicas museológicas, nascidas durante este período de experimentação coletiva, numa estratégia que não descure uma ação concertada junto das comunidades, a nível local. Nesta estratégia, o digital surge, então, como extensão, e com um cariz complementar, ao trabalho realizado no terreno, abrindo-se espaço para a exploração de narrativas e de experiências alternativas, sobre o património (e sobre a instituição), tirando partido das especificidades da linguagem e das tecnologias digitais e não se sobrepondo à experiência física, in situ.
Trata-se de um equilíbrio difícil de ser alcançado e seria porventura útil a realização de um estudo analítico considerando o alcance e adesão às diferentes tipologias de recursos digitais e de conteúdos, desenvolvidos durante este período, tendo em vista a avaliação do seu real potencial de inovação. Não obstante, esta corrida ao digital veio, sobretudo, evidenciar a incapacidade financeira das instituições (ou a falta de investimento financeiro) para garantir a relevância da sua presença e atividade educativa online/digital. Regressamos, deste modo, à causa mãe já identificada: a fragilidade do ecossistema cultural. Uma fragilidade que se revela, no caso concreto dos museus, na dificuldade em integrar profissionais de outras áreas, como as criativas, na precariedade de vínculos laborais, incluindo em áreas prioritárias como a dos serviços educativos3 ou da mediação cultural, e em última instância, na dificuldade em desenvolver projetos de intervenção, com impacto a médio e longo prazo.
O tema proposto pelo International Council on Monuments and Sites para esta edição do Dia Internacional de Monumentos e Sítios, foi, pois, o seguinte: “Culturas partilhadas, património partilhado, responsabilidade partilhada”. Porém, promover uma participação efetiva e eficaz por parte de populações, comunidades, grupos e indivíduos, não só na gestão mas, em última instância, na identificação do (e com o) seu património, representa, em termos práticos e operacionais, um grande desafio. Como incentivar uma experiência do nosso próprio património, dos nossos monumentos e sítios, como efetivamente algo de nosso, e não como, nas palavras de Laura Castro, se de um “lugar estrangeiro” se tratasse, que visitamos, “como turistas”, nos tempos livres? Como promover uma educação patrimonial participada?
Em tempos de crise, assistimos, em Portugal, a uma mobilização coletiva pela cultura e pela arte, envolvendo agentes culturais e artistas, e, de forma mais ou menos abrangente, de toda a sociedade civil. O mesmo tipo de envolvimento não se verificou no caso do Património ou das instituições tendencialmente responsáveis pela sua gestão. Qual o motivo para este aparente desinteresse ou desresponsabilização perante um bem, que é de todos e que a todos procura representar?4 Enquanto nos preparamos para reabrir portas, estamos perante um momento único para a reflexão e para a reavaliação do papel do Património e dos museus, no pós-crise. Ou, em alternativa, para repensar a sociedade que queremos construir, com (e para além) do turismo.
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1Segundo dados de 2017, reunidos no Eurobarómetro - Os Europeus e o Património Cultural, o índice de frequência de museus, por parte dos portugueses, é consideravelmente inferior ao da média europeia, sendo que apenas 27% dos portugueses inquiridos neste estudo afirmaram visitar regularmente museus, em comparação com um índice de 50% nesse sentido, correspondente à média europeia. Estes dados vão ao encontro do estudo promovido pela Revista Gerador (julho de 2019), onde se destaca a reduzida frequência de museus, por parte dos portugueses, inclusivamente, por exemplo, em comparação com a frequência ou visita a monumentos. A percentagem de inquiridos que afirmou visitar regularmente monumentos (cerca de 45%) é, aliás, consideravelmente superior àquela que afirmou visitar frequentemente museus (cerca de 25%).
2Incluem-se na tipologia de iniciativas descrita, a título de exemplo: visitas virtuais (muitas das quais tirando partido de recursos externos, de acesso gratuito, como a aplicação Google Arts & Culture), fotografias ou outro registo de coleções e de exposições passadas, curiosidades e sugestões de atividades lúdico-pedagógicas, em caderno, para o público infantojuvenil.
3Considere-se a este propósito, as polémicas em torno da recente decisão de exclusão, por parte da Fundação Serralves, de colaboradores subcontratados no âmbito dos serviços educativos, ou a situação paralela na Casa da Música.
4Nesse sentido, o Eurobarómetro - Os Europeus e o Património Cultural, poderá novamente ser útil para uma caracterização mais desenvolvida ao nível das particularidades da participação cultural dos portugueses. A título de curiosidade, 93% dos portugueses inquiridos, superando a média europeia nesse indicador (82%), afirma sentir orgulho pessoal em relação a monumentos, obras de arte ou tradições nacionais. Contudo, os portugueses surpreendem também pelo aparente desinteresse, apontado como principal motivação para a falta de participação em atividades culturais (45% face a 31% como média europeia). Noutro aspeto, são os portugueses que colocam uma maior responsabilidade sobre as autoridades públicas, particularmente sobre as autoridades locais, para a proteção do património cultural (no segundo caso, com uma discrepância de 55% para 39% de respostas nesse sentido, correspondendo à média europeia).